NOSSA SENHORA DA AMAZÔNIA: SOLUCIONANDO CONTRADIÇÕES

Autor: Dr. Pedro Gabriel
Publicação original: https://wherepeteris.com/our-lady-of-the-amazon-solving-the-contradictions/

Nesta segunda-feira, 20 de outubro, algumas pessoas invadiram a Igreja de Santa Maria na Traspontina, onde estavam guardadas e expostas as estátuas polêmicas, roubaram-nas e as jogaram no rio Tibre, enquanto filmavam fazendo isso. É claro que isso não é novidade. Qualquer pessoa que tenha acompanhado essa polêmica nas últimas semanas já sabe disso. Não postarei o link e nem o vídeo para não dar mais publicidade a essas pessoas, que já receberam muitos aplausos de apoiadores que pensam da mesma forma.

Retardei meus comentários sobre esse incidente até o momento, porque esperava que a resposta a essa ação lamentável trouxesse alguma clareza a toda essa confusão. Desde o início deste debate, sempre adverti as pessoas a serem prudentes com as informações que recebiam e a evitar tirarem conclusões e juízos precipitados. Neste site, nós nos esforçamos para não reagir de maneira automática e tentamos fornecer informações apenas de fontes primárias (ou pelo menos confiáveis). A façanha realizada nesta segunda-feira foi justamente a antítese dessa abordagem: um ato temerário e imprudente de gente que pensava ter certeza do que estava acontecendo, porque ouvia propaganda sensacionalista e tendenciosa. Para eles, era simples: eles estavam certos e os outros errados.

Ao contrário, é próprio da pessoa que estuda um assunto com profundidade enfrentar eventualmente a complexidade da realidade, com todas suas nuances e multiplicidade de fatores em jogo. E a realidade é esta: desde que esta controvérsia começou nós recebemos informações contraditórias. Isso não é culpa exclusiva da mídia tendenciosa que quer empurrar a narrativa do “paganismo no Vaticano” para marcar pontos contra o Papa. Então por que? Por que todas essas contradições? De onde elas vêm? Da mesma forma, de onde vêm a afirmação “Nossa Senhora da Amazônia”? É isso que tenho tentado analisar nos últimos dias.

UMA REPRESENTAÇÃO DA VIDA

Após o furto, houve um esclarecimento do Dr. Paolo Ruffini1, do Discatério das Comunicações do Vaticano:

“Nós já repetimos diversas vezes que aquelas representavam vida, fertilidade, mãe terra. Foi um gesto – acredito – que contradiz o espírito do diálogo que deve sempre nos inspirar. Não sei mais o que dizer, exceto que foi um roubo, e talvez isso fale por si.”

Hoje mais cedo, foi relatado no Twitter que Ruffini deu uma “resposta definitiva”2:

“Nenhuma prostração ou rituais foram feitos. Todos nós devemos ser firmes ao contar coisas que ocorreram na frente das câmeras.”

Isso é coerente com sua resposta anterior à mesma pergunta, antes do furto (veja aqui3, na seção “Resposta a Ivereigh”). Na época, ele respondeu dando sua opinião pessoal, não na sua função oficial de porta-voz do Vaticano. Ademais, ele disse que tomaria mais informações da REPAM e dos outros organizadores. Foi o que aconteceu?

Parece que sim, porque essa resposta também é consistente com as intervenções de outros membros da REPAM, que desde o início estão comprometidos nessa polêmica. Inés San Martin do site Crux esteve presente na Via Crucis neste domingo onde a estátua estava presente, e perguntou a um dos organizadores o significado do evento4:

“Segundo o Pe. Fernando Lopez, jesuíta, e membro do “Grupo Itinerante”, composto por homens e mulheres, religiosos e leigos, que viajou pela Amazônia pregando o Evangelho em áreas extremamente remotas, a imagem da mulher grávida “representa a vida”. O padre jesuíta foi uma das centenas de pessoas que compareceram à Via Crucis de sábado organizada sob a égide de “Amazônia: Casa Comum,” patrocinada por várias organizações católicas, como a Caritas Internationalis, Misereor, International Union of Superior Generals e a REPAM, Rede Eclesial Pan-Amazônica, (…) Lopez disse que a escultura de madeira é uma imagem que o Grupo Itinerante usa há anos e que foi comprada em uma feira de artesanato de Manaus, uma cidade da Amazônia brasileira.”

Recentemente, descobrimos um vídeo postado na página do Facebook de uma pessoa envolvida com o grupo REPAM, chamada Afonso Murad5. Ele diz que a imagem não é religiosa, que não recebeu nenhum tipo de culto e que representa a terra e os povos indígenas.

Aqui está a transcrição do que ele disse:

“Eu sou o irmão Afonso Murad e estou aqui em Roma durante o Sínodo para a Amazônia e quero esclarecer algo que muita gente me pediu. Na segunda-feira de manhã, provavelmente, um pequeno grupo entrou na Igreja Traspontina dos Carmelitas, onde se realiza, paralelamente ao Sínodo, uma série de celebrações sobre a Amazônia. Cada dia há ao menos dois momentos de oração, além de painéis e palestras. Nesse contexto, havia uma série de símbolos que eram utilizados neste local. Entre eles havia três silhuetas de uma mulher indígena grávida para simbolizar a Terra que cuida da gente e também dos povos indígenas. Quero esclarecer que contrariamente ao que se tem dito no Brasil, essa não é uma imagem religiosa, não foi objeto de culto, é simplesmente um símbolo dos povos indígenas e que foi atribuído como se fosse uma imagem da Pachamama, a Mãe Terra. Os indígenas não cultuam imagens da Mãe Terra como a gente faz com a imagem de Nossa Senhora ou do Santíssimo Sacramento. Portanto, era simplesmente um símbolo religioso entre tantos que estão ali na igreja presentes para quem quiser ver. Portanto, este gesto foi um gesto de violência, de desrespeito e, portanto, não pode ser aprovado por nenhum de nós. Você gostaria de que na Igreja alguém entrasse lá e pegasse algum de seus símbolos religiosos, seja uma vela ou um pano, você gostaria? Claro que não. Por isso, nós nos colocamos claramente contra esse gesto violento e também não damos muita importância a ele. Porque o mais importante é que os nossos olhares, nossas mentes e nossos corações estejam dirigidos para a Amazônia, para a Igreja na Amazônia e para sua missão de anunciar o Evangelho, em diálogo com os povos amazônicos”.

FONTES CONTRADITÓRIAS

Essas fontes são fidedignas, uma vez que são esclarecimentos de pessoas que estavam realmente envolvidas na organização das atividades paralelas ao Sínodo. Desde o meu primeiro artigo, tenho dito que essas são as únicas [fontes] que devemos recorrer para encontrar respostas.

Contudo, essas informações contradizem o que foi dito por dois outros participantes, a saber, a mulher nativa1 que presidiu a cerimônia, e o Pe. Roberto Rojas, padre que foi entrevistado pelo Rome Reports2 e que foi o organizador da mostra na Igreja Santa Maria da Traspontina. Ambos se referiram às imagens como “Nossa Senhora da Amazônia”. Além disso, há dois relatos contraditórios acerca da origem da estátua: Pe. Lopez disse que foi comprada em Manaus e Pe. Rojas disse que foi feita por católicos indígenas da Amazônia.

É importante notar que a REPAM não é uma organização única, mas uma rede de diferentes organizações que trabalham juntas para um objetivo comum. Ademais, existem muito mais do que uma cópia da mesma imagem, então elas podem ter origens diferentes.

Portanto, ao contrário do que alguns comentaram em nossa área de comentários, Dr. Ruffini não foi culpado por ignorar esses fatos. Ele estava aparentemente repetindo a explicação que recebeu do organizador que pediu ou que lhe forneceu essas informações. Nós do Where Peter Is levamos a informação recolhida de alguns organizadores que disseram uma coisa e o Dr. Ruffini e outros porta-vozes do Vaticano receberam de outros organizadores uma informação diferente.

Contudo, apesar dessas discrepâncias, todos os envolvidos entrevistados sobre a imagem concordam que ela não é uma estátua pagã:

  • A mulher nativa e o Pe. Rojas disseram que é Nossa Senhora da Amazônia. Eles não atribuíram à imagem um significado pagão.
  • Dr. Ruffini, do Discatério de Comunicações do Vaticano, disse em sua primeira resposta sobre a questão (embora, na época, não atuando na sua função oficial): “Creio que tentar acreditar e ver símbolos pagãos… ou maus, isso não é possível.”
  • Antes dele, o Bispo David Guinea3 também foi perguntado sobre o significado da estátua, e ele respondeu: “não precisamos criar nenhuma conexão com a Virgem Maria ou com um elemento pagão.
  • Pe. Lopez, entrevistado por Inés San Martin: “Perguntado se ela fazia parte de um ritual pagão, o padre respondeu um enfático “não”.”
  • Ir. Afonso Murad deixa claro que a estátua não é uma imagem religiosa e que não recebeu qualquer tipo de culto.

Em outras palavras, a hipótese “é claramente pagã” foi refutada em todas as etapas dessa investigação. O fato dessa acusação não ter sido deixada de lado, e sim agarrada com teimosia, demonstra que quem insulta essa imagem não se preocupa com a verdade, mas com a divulgação de uma narrativa.

No decorrer dos últimos dias, muitas dessas pessoas nos enviaram links das redes sociais contendo manifestações que criam refutar as interpretações marianas das estátuas (escondendo como esses links, na verdade, refutavam suas acusações de paganismo), e continuaram com zombarias triunfalistas do tipo “E agora, o que vai dizer sobre isso, hein? Hã? O que vai fazer? Peguei vocês!” Durante esse tempo, eles ignoraram os organizadores que realmente disseram que [a imagem] era Nossa Senhora da Amazônia, como uma espécie de amnésia seletiva que os fazia esquecer essas evidências inconvenientes. O mesmo tipo de amnésia seletiva que convenientemente esquece tudo que seus próprios links desmascaram sobre as acusações de paganismo, e que seleciona apenas o que nega Maria.

Claro, isso não é um jogo em que duas perspectivas antagônicas competem por referências e quem tiver mais pontos vence. Esta era a perspectiva daqueles que estão desesperados para validar sua tese infundada da Pachamama. Eles vasculhariam links para fortalecer sua posição e os jogariam na nossa cara como se de alguma forma anulassem os organizadores que disseram que era Nossa Senhora.

Todavia, uma pessoa que está buscando realmente a verdade sobre o assunto, em vez de empurrar uma narrativa, agiria diferente. Perguntaria a si mesma: “Se isso é apenas uma representação da vida… então por que há pessoas envolvidas no evento dizendo que é Nossa Senhora da Amazônia?

Curiosamente, imaginei uma potencial resposta para esta pergunta crucial de duas fontes muito improváveis…


OS NATIVOS FALAM PELA CORTINA DE FUMAÇA

As duas fontes improváveis de que falo são os sites Life Site News (LSN) e EWTN. Para creditá-los, eles fizeram o que pedi aos jornalistas (e aos porta-vozes do Vaticano) em meu primeiro artigo: coletaram informações das pessoas no local. Claro, estes veículos de comunicação são enviesados contra o Papa, e o LSN em particular tem tentado ativamente provar que a cerimônia nos Jardins do Vaticano foi um rito pagão, e que o ícone controverso é a Pachamama. Portanto, devemos ser cuidadosos quando aceitamos suas explicações de que foi isso o que aconteceu. Não obstante, existe o critério do constrangimento4. Em outras palavras, se fontes tendenciosas contra a hipótese “Nossa Senhora da Amazônia” sugerirem ou disserem algo que prove essa hipótese como certa, então devemos acreditar nelas, porque não diriam se não fosse verdade.

Por sua vez, o LSN entrevistou vários voluntários da Igreja de Santa Maria da Traspontina que supostamente responderam que a estátua era Pachamama5.

Tenham em mente, por favor, que não temos a transcrição completa da pergunta do LSF, nem a resposta completa dos voluntários, exceto um (que descreveu a imagem mais como um símbolo do que uma deusa): dado o viés e a falta de confiabilidade do LSN, devemos aceitar isso como um grão de sal.

Contudo, a razão pela qual trago isso à tona é esta joia escondida e enterrada no meio do artigo de notícias do LSN:

“Dois senhores a quem perguntamos apoiaram a crença de Paolo Ruffini de que a estátua é apenas um símbolo da “vida”. Mas quando nós mencionamos a um deles que vários outros voluntários identificaram a estátua como “Pachamama”, ele parou e disse que é claro que as pessoas têm “interpretações diferentes: algumas a vida, outras a Pachamama e algumas até a chamam de Virgem Maria”.

Quem são essas pessoas que a chamam de Virgem Maria? Podemos saber? Isso nos remete ao vídeo da EWTN, no qual Rafael Tavares, Editor-Chefe da seção de língua portuguesa da ACI Digital, é entrevistado. Aqui está o vídeo:

Rafael Tavares questionou a REPAM (03:21 do vídeo) sobre a origem das estátuas e recebeu a seguinte resposta (03:46 em diante):

“A imagem é arte. Pura arte. Não tem significado pagão, nem significado cristão (…) A história por trás dessa estátua é que um artista de Manaus, capital do estado do Amazonas… fez essa imagem e é membro da equipe de espiritualidade que está organizando os eventos da Traspontina, eles descobriram a imagem e começaram a levá-la de tribo em tribo, de lugar em lugar, e os próprios índios começaram a chamá-la – como você vê – de Nossa Senhora da Amazônia.”

A partir daí, Tavares imediatamente passa a destacar as semelhanças com a deusa pagã Pachamama. Porém esta é uma emissão gratuita da sua opinião pessoal, baseada em similaridades. É sua interpretação como um homem não-indígena, jogando de acordo com o viés da EWTN e da ACI, que lançaram a hipótese pagã desde o começo. Então, novamente, esta parte deve ser analisada com cautela.

No entanto, este vídeo da EWTN lança muita luz sobre a questão. Primeiro, é consistente com a versão do Crux sobre a origem da imagem: foi comprada em um mercado em Manaus. Segundo, mostra que pode haver uma desconexão entre o significado atribuído às figuras pelos organizadores oficiais da REPAM e os povos indígenas. Os primeiros veem a imagem como uma representação da vida, desprovida de significado religioso (seja pagão ou cristão), que eles podem usar para ilustrar suas atividades. Os últimos podem ver esta imagem como uma representação da Virgem Maria. Um movimento popular da própria Amazônia, que pode ou não ter um tamanho significativo, tomou a iniciativa de “cristianizar” essa imagem. Isso é consistente com o que ocorreu nas últimas semanas.

Em outras palavras, ao menos alguns indígenas olham esse ícone e atribuem a ele uma conotação mariana. E sabemos que pelo menos um desses indígenas era uma mulher que presidiu a cerimônia do Dia de São Francisco de Assis nos Jardins do Vaticano. Ela chamou [a estátua] de “Nossa Senhora da Amazônia” e usou uma terminologia muito católica (ao mencionar “a Igreja”) que parece descartar uma mentalidade pagã. Tendo em vista que essa cerimônia foi o que motivou toda a confusão, acredito que deveríamos acreditar na palavra dela e caridosamente presumir que ela não fez nada contrário à fé. Na melhor das hipóteses, eles veneraram o que achavam ser uma imagem mariana (mesmo que o significado fosse atribuído a uma imagem que não foi criada primeiramente para esse fim).

É TUDO A MESMA COISA, É TUDO PACHAMAMA

Uma das maneiras pelas quais os críticos têm evitado as constantes refutações da [acusação de] paganismo é dizendo que guardar uma representação da vida (ou Mãe Terra, ou fertilidade, ou o que quer que seja) em uma Igreja e se curvar a ela é paganismo de qualquer jeito. Claro, ignorando o que o paganismo realmente é. Os pagãos antigos não criavam uma religião a partir de símbolos e meras representações. Os deuses pagãos não eram entidades abstratas, mas realidades concretas para seus adoradores. Os pagãos acreditavam que seus ídolos não representavam certas ideias somente (como natureza, elementos físicos, amor, guerra), mas que esses mesmos ídolos continham a energia das ideias que representavam. A idolatria era, portanto, uma forma de manipular essas realidades abstratas, tornando-as tangíveis, palpáveis, visíveis. Você nunca veria um antigo ditado pagão: “Este é apenas um símbolo, uma representação.” Dizer isso tornaria o ato de idolatria sem sentido, já que o adorador pagão idolatrava justamente para conseguir algum tipo de favor dos deuses.

Alguns críticos postulam que, quando dizem “Pachamama”, não estão se referindo à deusa real dos livros de antropologia, mas a qualquer ideia abstrata que possam interpretar como paganismo. Seja Pachamama ou uma representação da vida, é tudo a mesma coisa. Nesse caso, o que os críticos estão realmente dizendo é que “Pachamama” é um conceito sem sentido que eles podem preencher com qualquer definição que desejarem. Ao rotular qualquer coisa que não gostam de “Pachamama”, eles realizam uma prestidigitação com a qual podem transformar qualquer coisa que o Vaticano diga em uma deusa pagã. Daí a repetição constante da “Pachamama” como fato estabelecido.

Claro, isso não é tão simples quanto eles gostariam que fosse. A certa altura dessa polêmica, recebi uma mensagem do leitor Eric Giunta. Está claro, por seu e-mail, que ele, no mínimo, não tende favoravelmente ao Papa Francisco, mas no espírito de honestidade intelectual, ele gentilmente compartilhou comigo seu excelente ensaio (https://ericsgiunta.wordpress.com/2019/10/23/mother-earth-in-medieval-christian-art-and-literature/), que eu recomendo fortemente.

Mostra a tradição rica e ortodoxa, que remonta à Idade Média, de representar a Mãe Terra / Natureza nas igrejas. Em adendo a seu ensaio, ele também menciona expressões legítimas de inculturação na América do Sul, onde as imagens da Pachamama e da Virgem Maria se confundem. Ao contrário de alguns antropólogos de gabinete que se preocuparam com essa questão simplesmente exibindo suas credenciais, Eric Giunta realmente fornece citações extensas e bibliografia acadêmica em seu artigo. Não consigo recomendar o suficiente.

Também gostaria de recomendar aos meus leitores um livro fantástico, chamado “Eternity in their Hearts”. É um livro pequeno, muito fácil de ler. Estava sendo recomendado em círculos católicos ortodoxos antes do Papa Francisco ser eleito (eu sei, foi por isso que comprei). Foi escrito por um missionário protestante, mas não contém nada contrário à fé católica e não mostra hostilidade aos missionários católicos. Com base nas evidências bíblicas (a cooperação de Melquisedeque com Abraão; o altar ao Deus Desconhecido usado por São Paulo) e de sua pesada experiência missionária (e as experiências de outros missionários), ele mostra claramente como algumas expressões pagãs contêm o que o Concílio Vaticano II chama de semina Verbi (“sementes do Evangelho”), que são na verdade uma materialização do anseio do homem não-evangelizado por Deus. Precisamos ter discernimento e prudência, pois na ânsia de catalogar como pagão tudo o que vem de outras culturas, talvez estejamos sufocando recursos valiosos que nos ajudarão em nosso processo de evangelização e fechando o coração de quem queremos levar a Cristo.

Para mim, não consigo imaginar como o ato desrespeitoso à cultura indígena de segunda-feira cometido por pessoas que se proclamam porta-vozes do verdadeiro catolicismo abrirá o coração dos nativos que trouxeram essa imagem como um símbolo de seus valores (até mesmo talvez como sua representação de Maria). “Você não pode ver Maria nisso, você tem que ver nos moldes que eu lhe dou: você pode usar Nossa Senhora de Guadalupe – ela é retratada como uma nativa da América do Sul e tem meu selo de aprovação.”

Ou, em alternativa: “Você não pode ter símbolos que evocam sua cultura em nossas igrejas. Essas são nossas igrejas e devem apenas refletir nosso entendimento do que é permitido ou não. Nem mesmo a hierarquia ou o Papa podem nos ignorar. Se você não obedecer, veremos isso como uma agressão, uma invasão, uma infiltração e destruiremos seus ícones. ”

Tudo isso está destruindo pontes que trariam novas almas a Cristo.

Tenho a absoluta convicção de que a abordagem do Papa Francisco de convidar as pessoas ao seu passado, permitindo que se expressem em sua própria voz e ouvindo-as em oração antes de fazer um julgamento é a forma como trazemos almas a Cristo.

O PAPA PESA

Nesse ínterim, o Papa deu sua opinião sobre essa controvérsia. Hoje, Francisco fez algumas observações sobre o incidente:

“Boa tarde. Quero dizer uma palavra sobre as estátuas da pachamama que foram tiradas da igreja da Traspontina – que estavam ali sem intenções idólatras – e foram atiradas ao Tibre. Em primeiro lugar, isto aconteceu em Roma e, como Bispo da Diocese, peço perdão às pessoas que ficaram ofendidas com este ato. Em seguida, quero comunicar a vocês que as estátuas que chamaram tanta atenção na mídia foram recuperadas do Tibre. As estátuas não foram danificadas”

Observe, o Papa é muito claro: as estátuas estavam lá sem intenções idólatras. Novamente, as acusações de paganismo são refutadas por ninguém menos que o Vigário de Cristo e Bispo de Roma. Nada pode ser mais oficial do que isso.

No entanto, como de costume, os que levantaram suspeitas tomaram o fato de o Papa se referir às estátuas como “Pachamama” como uma validação do seu ponto. Podemos ver, de novo, o modus operandi: eles pegam e escolhem o que valida sua narrativa e convenientemente passam por cima do que não lhes interessa. Eles se apegaram a uma única palavra (“Pachamama”) e ignoram a parte sobre ela não ter uma intenção idólatra.

Felizmente, o porta-voz do Vaticano foi rápido em esclarecer o que o Papa realmente queria dizer:

“Em seus comentários, o papa usou a frase “as estátuas da pachamama ”, mas na transcrição a palavra pachamama estava em itálico.

O porta-voz do Vaticano, Matteo Bruni, disse que o papa usou a palavra como meio de identificar as estátuas porque foi assim que se tornaram conhecidas na mídia italiana e não como uma referência à deusa”.

É interessante que pessoas que, até poucos dias atrás, estavam se agarrando desesperadamente às palavras dos porta-vozes do Vaticano (mesmo que, na época, não estivessem agindo em sua função oficial, mas dando interpretações pessoais) agora estão evitando o esclarecimento do porta-voz do Vaticano para se agarrar a uma leitura literal das palavras do Papa. Claro, eles só acreditam no Papa na parte da “Pachamama” porque acham que isso prova seu ponto. Se o Papa dissesse o contrário, não acreditariam nele, como fica evidente quando não concordaram com o Papa quando disse que as estátuas não tinham intenção idólatra.

No final das contas, o Vaticano explicou por que o Papa usou a palavra “Pachamama”. A ideia de que as estátuas eram de uma deusa pagã e que recebiam o culto de latria nos Jardins do Vaticano foi refutada mais uma vez, agora nos escalões mais altos da Igreja.

CONCLUSÕES

Agora, acho que podemos tirar as seguintes conclusões de toda essa saga:

  • As estátuas foram adquiridas e usadas pela REPAM como representação da vida, da mãe terra e dos povos indígenas, não de deusas pagãs;
  • A posição oficial do Vaticano e da REPAM é que essas representações (quer na cerimônia dos Jardins do Vaticano ou na Igreja de Santa Maria da Traspontina) não têm significado religioso, seja pagão ou católico;
  • No entanto, alguns indígenas deram um significado mariano às imagens;
  • Entre elas está a indígena que presidiu a cerimônia nos Jardins do Vaticano e que apresentou o ícone ao Papa; Isto também foi assegurado pelo sacerdote encarregado de organizar os eventos na Igreja de Santa Maria na Traspontina;
  • Os únicos que propagam acusações de paganismo são as mídias hostis ao Sínodo e tendenciosas contra o Papa;
  • As acusações de paganismo foram oficialmente, contínua e repetidamente negadas pelos membros da REPAM, pelos porta-vozes do Vaticano e pelo próprio Papa;
  • Atos simbólicos de reverência a representações de conceitos abstratos não equivalem a idolatria ou paganismo;
  • Há uma tradição de representações ortodoxas da Mãe Terra na Igreja, e também de expressões inculturadas ortodoxas da Pachamama, que não são pagãs ou idolatras;
  • Portanto, os atos de furto, vandalismo e desrespeito à cultura indígena ocorridos no dia 20 de outubro foram injustificados e resultaram de ideias em torno das imagens que não condizem com a realidade dos fatos;

No final, nada que pudesse ser dito pelo Vaticano, pela REPAM ou pelo Where Peter Is poderia ter impedido os lamentáveis eventos que ocorreram na segunda-feira. A narrativa do ritual pagão já havia sido acionada e não poderia ser barrada, porque aqueles que acreditam nessa narrativa deram sua submissão de espírito e de vontade aos canais que os alimentaram com essa propaganda. Era preciso acreditar, porque tinha um motivo oculto: minar o Sínodo, retratando-o como um covil de heterodoxia, liberalismo e sincretismo. Isso, por sua vez, serviu à motivação suprema: minar o pontificado de Francisco. Essa é a única razão pela qual essa imagem tinha que ser a Pachamama, e por que essa afirmação não podia ser falsa em suas mentes.

Afinal, esse ato de vandalismo nada mais foi do que a manifestação física do que transpareceu nas redes sociais nas últimas semanas, a encarnação da hermenêutica da suspeita, que o pe. Jorge Bergoglio, futuro Papa Francisco, descreveria com precisão em seu ensaio Silencio y Palabra:

“A suspeita é um erro antigo. Ela cria no coração um certo mal-estar em relação a qualquer comportamento do irmão que eu não entendo totalmente. Este mal-estar aumenta de intensidade e acaba por ver como ameaça tudo o que não entende e não controla (…) O homem desconfiado peca contra a luz, enamorou-se desta atitude de querer que tudo fosse esclarecido, porque a sua vida consiste em confundir a conspiração com a realidade. Sempre há, no homem que suspeita, uma área que resiste à luz de Deus. Se tal luz viesse, ele não poderia mais suspeitar. (…) Suspeita é o apego a uma área de penumbra, alimentando o homem que optou pela parcialidade do [conflito institucional interno] sobre a totalidade da instituição como corpo ”.

Nós do Where Peter Is preferimos, como Paul Fahey e David Lafferty escreveram recentemente, a “confiar na ortodoxia e na boa vontade do papa, do sínodo e dos católicos indígenas participantes”. Opomo-nos à hermenêutica da suspeita, promovendo, em vez disso, uma hermenêutica da fé e da caridade. Algumas pessoas nos condenaram por acreditarmos ao pé da letra na mulher indígena que apresentou a estátua ao Papa. No entanto, não temos razão para duvidar dela ou de sua sinceridade. Se a sua representação de Nossa Senhora é imperfeita, vamos construir a partir daí, em vez de tirar dela e destruir.

Tentamos levar o Sínodo da Amazônia ao nosso coração e aprender com ele. E uma das coisas que o Sínodo nos pede desde o seu início é falar menos e ouvir mais. Aqueles que caíram na suspeita e no vandalismo eram os que se recusavam a ouvir qualquer coisa ou pessoa, porque pensavam que tudo era claro: o ritual era “claramente pagão”, “até uma criança de 5 anos poderia entender isso” e aqueles que disseram o contrário estavam “pirando”.

Em vez disso, ouvimos os indígenas, pois entendemos que não sabíamos muito e precisávamos reunir mais informações. Mesmo quando nos baseamos apenas em fontes primárias, tivemos que reconhecer que a realidade dos fatos era mais ampla, matizada e complexa do que pensávamos no início. Não estávamos errados, mas também não tínhamos o quadro completo (algo que ainda não temos). Conforme as peças do quebra-cabeça se encaixavam, precisávamos integrar as novas descobertas com as que tínhamos encontrado, mesmo as que pareciam, num primeiro olhar, irreconciliáveis. Continuamos aprendendo, ouvindo e descobrindo coisas novas à medida que avançamos. Ao fazermos isso, encontramos cada vez menos motivos para ficarmos com medo e escandalizados.

Não tenhamos medo de aprender com aqueles que agem de maneiras incompreensíveis para nós. Que nos comovamos com a sua sede da Mãe Santíssima, sede tão forte que extraíram Nossa Senhora de uma mera representação da vida, e direcionemos esta semente do Evangelho, em vez de a abortar. Enquanto expressavam com alegria sua fé à sua própria maneira, outros no Ocidente estavam mais ocupados em acusar, condenar e destruir, mesmo sem gastar um tempo para entender. Apenas contrastando essas duas atitudes, podemos ver o quanto podemos aprender com elas se apenas ouvirmos.

REFERÊNCIAS

  1. https://www.vaticannews.va/en/vatican-city/news/2019-10/ruffini-vatican-prefect-on-theft-of-statues-in-rome.html
  2. https://twitter.com/richraho/status/1187707029235916801?s=21
  3. https://wherepeteris.com/our-lady-of-the-amazon-pray-for-us/
  4. https://cruxnow.com/amazon-synod/2019/10/synods-most-debated-figure-was-back-at-saturdays-way-of-the-cross/
  5. https://www.facebook.com/afonso.murad/videos/10213549974018531/?sfns=mo
  6. https://twitter.com/CatholicSat/status/1181216431859539968
  7. https://netny.tv/episodes/currents/indigenous-peoples-blessed-mother/
  8. https://twitter.com/catholicsat/status/1181189628327542785?s=12
  9. https://en.wikipedia.org/wiki/Criterion_of_embarrassment
  10. https://www.lifesitenews.com/news/symbol-of-life-or-pachamama-vatican-and-repam-synod-organizers-divided-on-identity-of-mysterious-statue

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