“Este documento tem 43.000 palavras. 43.000 palavras. Isso é muito. Esta é – acredito que seja – sua encíclica mais longa. Eu não comparei, mas parece a mais longa. E vou jogar uma coisa aqui na tela que acho bastante ofensiva. Eu não sou o primeiro a perceber isso. Portanto, há 43.000 palavras no documento.
“Vejam isto: Deus Pai é mencionado zero vezes, Jesus Cristo duas, Espírito Santo duas. Este documento não é a sobre nossa fé. Não é sobre a Trindade e nem sobre o catolicismo. É sobre humanismo. É sobre globalismo, naturalismo, etc. ”
Taylor Marshall
Transmissão ao vivo do Youtube
6 de outubro de 2020
Em sua resposta à nova encíclica do Papa Francisco Fratelli Tutti, Taylor Marshall, personalidade católica reacionária do Youtube, emprega um truque retórico que tem sido comum entre os detratores do Papa Francisco desde o início de seu papado. Eu percebi isso pela primeira vez em 2013 no blog do tradicionalista Louis Verecchio, em sua “análise”1 da Evangelii Gaudium. Ele reclama: “Eu dei uma olhada nas notas de rodapé deste documento de mais de 50,000 palavras, e vejam só, das 217 referências, há um total de 20 anteriores ao Vaticano II.” Ele contrasta isso com a Immortale Dei do Papa Leão XIII: “As notas de rodapé neste documento fazem uma referência esmagadora às Sagradas Escrituras, com uma série de referências aos Padres da Igreja.
Olhemos mais de perto. Sim, das vinte e sete notas de rodapé da Immortale Dei, há impressionantes 21 citações das escrituras. E ele está certo. Não há uma única nota de rodapé na Evangelii Gaudium que seja uma referência bíblica. Por que? Porque as referências bíblicas são citações intratextuais. Se Verrecchio (cuja direção o levou aparentemente ao sedevacantismo2) tivesse se dado ao trabalho de ler atentamente o documento, ele teria notado isso. As referências bíblicas na Evangelii não estão numeradas, então me dei ao trabalho de contá-las. A Evangelii Gaudium contém um total de 207 (mais ou menos) referências às escrituras: o número impressionante de dez vezes mais citações bíblicas das que constam na encíclica de Leão XIII. E como o documento de Leão tem apenas 27 notas de rodapé no total, isso significa que ele só ofereceu seis outras referências, em comparação com as 20 referências pré-conciliares no documento de Francisco.
Desde então, esse jogo retórico fútil (usando na crítica aos documentos da Igreja buscas de palavras para pegar e chamar atenção para “omissões”) tem sido empregado repetidamente pelos detratores do Papa. Por exemplo, no início deste ano, o LifeSite News publicou um ensaio3 de uma cientista condenando um documento da Pontifícia Academia para a Vida sobre como responder à pandemia do Covid, em que critica a Academia por usar a palavra “esperança” seis vezes, “fé” uma vez, e omitir o termo “graça” completamente. Na sua cabeça, isso significava que o documento estava dizendo, “Sem uma palavra sobre a graça, o documento está sugerindo de fato que os seres humanos podem se erguer com as próprias forças para alcançar a conversão.” Os termos omitidos, segundo ela, equivaliam a um documento que apresentava “uma visão reducionista de uma utopia meramente terrena onde todos os habitantes podem ‘fruir de uma boa vida’”. Esta é uma afirmação ousada sobre um documento que apela repetida e explicitamente para a conversão das nossas mentes e corações.
Ao longo dos anos, tenho encontrado muitos exemplos de críticos do papa empregando táticas similares. Por exemplo, em sua dura crítica4 do documento final de 2018 elaborado no encontro pré-Sínodo por jovens adultos, Matthew Schmitz reclama das palavras que aparecem no documento, ao invés das que ele gostaria de ver: “Eles mencionam ainda ‘bares’, ‘academias’, ‘parques’, ‘cafeterias’, ‘estádios’, ‘local de trabalho’, ‘prisões’, ‘orfanatos’, ‘hospitais’, ‘centros de reabilitação’, ‘zonas de prostituição’, ‘regiões devastadas pela guerra’, ‘periferias’, ‘áreas rurais’… a Igreja aparentemente deve estar em todo lugar, menos nas igrejas. Em alguns pontos, a atitude perante o solo sagrado parece quase hostil.” Segundo Schmitz, “tudo isso equivale a uma espécie de arianismo funcional, uma ênfase na dimensão humana da Igreja ao invés da divina. Suponho que a ideia de “conhecer as pessoas onde elas estão” não seja uma prioridade para Schmitz.
Outro autor dessa abordagem preguiçosa é o biógrafo de São João Paulo II, George Weigel. Ele usou isso para criticar5 a declaração de Francisco sobre a importância da família em seu discurso ao Congresso dos EUA em 2015 (“Ele não mencionou ‘homem e mulher’ ou ‘pai e mãe’, ao voltar-se para a vulnerabilidade das crianças”). Ele também reclama que “Fracisco usou a palavra ‘diálogo’ muitas vezes”. Já se pode imaginar que se Francisco tivesse usado a palavra “diálogo” apenas duas vezes, seus críticos iriam encontrar outra para palavra usada excessivamente para julgar.
Muitos críticos de Amoris Laetitia expressaram consternação pelo fato do Papa Francisco não citar explicitamente a Veritatis Splendor de S. João Paulo II. Apesar do fato de que, quando bem compreendidos (como demonstrou Brian Killian6 em Maio de 2019), ambos os documentos estão em harmonia entre si. Pe. Raymond Souza7 escreveu: “Não há uma só referência, no texto principal ou mesmo nas notas de rodapé, à Veritatis Splendor. Esse também foi um dos principais argumentos das dubia. Mas fique claro, contudo, que o papa não está obrigado a citar nada em um documento magisterial. Neste caso, parece que os críticos estão aborrecidos pelo papa não escrever aquilo que eles queriam que fosse escrito, e que isso de alguma forma constitui um pecado de omissão.
O que nos leva à Fratelli Tutti. Em seu artigo8 que ataca o documento do Papa, Phil Lawler condena um série de omissões notadas por ele:
“Outros pontífices enfatizaram a importância crucial de matrimônios saudáveis e famílias fortes como sendo a base para uma sociedade saudável. Fratelli Tutti nunca menciona o matrimônio, e quando a palavra “família” aparece, ela é invariavelmente uma referência à família humana como um todo, não à família nuclear.
Embora a omissão de remeter aos pontífices anteriores seja um defeito na Fratelli Tutti, é apenas um sinal de uma falha crucial da encíclica: a ausência de qualquer perspectiva nitidamente católica. A palavra ‘novo’ aparece duas vezes a mais que o nome “Jesus”. Há pouca ou quase nenhuma menção à oração, ao Evangelho, ou aos sacramentos. Papa Francisco escreve bastante sobre a economia de mercado, mas muito pouco sobre a economia da salvação.”
Vejamos essas afirmações. Primeiro, é verdade que a palavra “matrimônio” não aparece no documento. Contudo, se você quiser a opinião do Papa sobre casamento, há um documento de 260 e poucas páginas no site do Vaticano chamado Amoris Laetitia, escrita pelo Papa apenas quatro anos atrás, que se concentra exclusivamente no matrimônio e na família. Se alguém realmente quiser se aprofundar nos pensamentos de Francisco sobre a família como base de uma sociedade saudável, este é um bom lugar para começar. “Família” parece na Fratelli Tutti 41 vezes. E sim, uma rápida olhada sugere que a maioria das referências são sobre a família humana, mas nem todas. Por exemplo, o parágrafo 19 diz:
“Não nos damos conta de que isolar os idosos e abandoná-los à responsabilidade de outros sem um acompanhamento familiar adequado e amoroso mutila e empobrece a própria família.”
O parágrafo 230 também enfoca a unidade familiar, com cinco referências. Em uma passagem, ele acontelha: “Numa família, os pais, os avós, os filhos são de casa; ninguém fica excluído.”. Mas supeito que o Sr. Lawler não pesquisou “famílias” no plural, que aparece 17 vezes e referem-se todas as vezes à unidade familiar individual.
Sua próxima afirmação “A palavra ‘novo’ aparece duas vezes a mais que o nome ‘Jesus’”, é enganosa. “Novo”9 aparece 66 vezes e Jesus 33 vezes. Suponho que ele tenha em mente passagens como a frase do parágrafo 77: “Cada dia é-nos oferecida uma nova oportunidade, uma etapa nova.”. Essa é o tipo de afirmação que faz os críticos de Francisco tremerem. (“Como ele ousa dizer algo positivo ou motivacional! Isto soa como modernismo e como o espírito do Vaticano II!)
Mas a palavra “novo” é usada de várias maneiras, desde “Novo Testamento” até “Nova York” cinco vezes nas notas de rodapé. E na maioria delas, é usada para condenar as formas de injustiça e imoralidade que permeiam nossos tempos atuais. No parágrafo 14, ele escreve: “Estas são as novas formas de colonização cultural”. Ele critica “novas formas de violência que ameaçam o tecido da sociedade” no parágrafo 66. Lawler diz que há “pouca ou nenhuma menção à oração”, o que é estranho, visto que ele termina a encíclica não com uma, mas com duas orações. Da mesma forma, a palavra “Evangelho” aparece sete vezes, há muitas referências a passagens do Evangelho e a mensagem de Cristo é clara por toda parte.
Ele está correto, o documento não se alonga (pelo menos explicitamente) na economia da salvação. No parágrafo 6, Francisco explica o porquê: “Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade”. Mas a encíclica se refere a “Nosso Salvador” e “o Senhor ressuscitado”. Além disso, o segundo capítulo do documento reproduz na íntegra a passagem do Evangelho (Lucas 10: 25-37) que melhor articula a compreensão cristã da economia da salvação. É quando um doutor da lei pergunta a Jesus: “O que devo fazer para herdar a vida eterna?” Jesus então começa a contar a parábola do Bom Samaritano, lembrando-nos de “ir e fazer o mesmo”.
Finalmente, chegamos a Taylor Marshall.
Sua tentativa de caluniar o Papa Francisco foi uma das mais mesquinhas, intelectualmente desonestas e deliberadamente enganosas que eu já vi. Como citei no início deste ensaio, Marshall afirma que “Deus Pai” nunca é mencionado no documento. Ele também afirma que “Jesus Cristo” e “Espírito Santo” são mencionados apenas duas vezes. Suponho que ele possa alegar que não está tecnicamente mentindo, porque de certa forma ele está correto: uma pesquisa por palavra por esses termos exatos só produz os resultados que ele afirma (bem, quase).
O que Taylor Marshall deixa de mencionar é que “Jesus” aparece 33 vezes (como mencionei acima). “Cristo” aparece 6 vezes. Para completar, “Cristo Jesus” até aparece uma vez. “Espírito Santo” na verdade aparece três vezes, não duas vezes como Marshall afirma, e há mais duas menções de “Espírito” que são claramente referentes ao Espírito Santo. Embora “Deus Pai” não apareça precisamente nessa ordem de palavras, há várias referências para “Pai” na encíclica. Existem também 80 referências a “Deus”, nove referências a “Senhor”, duas referências ao “Criador” e uma referência à “Trindade”.
Em outras palavras, ele está mentindo. Eu falo absolutamente sério quando digo isto: este é um comentário religioso para pessoas crédulas e ignorantes. Não vou negar que funciona. Mas é perverso. Ele está enganando as pessoas e sabe disso. Ele conta com o fato de que a maioria de seus seguidores não faz suas próprias pesquisas e nem verifica os fatos, mas apenas confiam nele. É um jogo ridículo e perigoso que ele faz, mas é muito talentoso nisso. Ele sabe como explorar a grave falta de capacidade de pensamento crítico de muitos católicos. Infelizmente, este é o estado de grande parte de nossa Igreja e de nosso país agora.
Centenas de milhares (senão milhões) de católicos bem-intencionados e comprometidos em nossas paróquias e comunidades estão sendo levados ao cisma por Taylor Marshall e outros como ele. Preocupo-me com o fato de que nossos bispos não tenham a menor ideia da profundidade e do alcance deste problema. Não está só crescendo exponencialmente nas paróquias, mas também entre padres e seminaristas.
Finalmente – e para terminar com uma nota um pouco mais divertida – eu gostaria de compartilhar algumas descobertas mais “surpreendentes” de outros documentos papais feitas (e projetadas) pelo nosso próprio Carlos Colorado, usando um pouco mais do que as teclas CTRL+F de seu teclado.
OBSERVAÇÕES
Percebo agora que Taylor Marshall não contou mal quando disse que o Espírito Santo é mencionado apenas duas vezes.
Sim, “Espírito Santo” aparece três vezes, mas vejam a imagem com atenção. Ele não coloca “Espírito Santo”, mas “O Espírito Santo” [The Holy Spirit]:
Esta é mais uma evidência de que seu “engano” foi intencional. Procurei por “Espírito Santo” e três referências apareceram:
Mas quando busquei por “O Espírito Santo”, apareceram apenas duas:
Fonte original: https://wherepeteris.com/the-inanity-of-ctrl-f-criticism/
Autor: Mike Lewis
1 https://akacatholic.com/making-all-things-new-again/
2 https://akacatholic.com/breaking-francis-responds-to-the-dubia/#post-10314
3 https://www.lifesitenews.com/opinion/vatican-life-academy-pens-document-on-pandemic-that-paints-earthly-utopia-without-god
4https://www.firstthings.com/web-exclusives/2018/03/what-young-catholics-want
5https://www.firstthings.com/article/2015/11/crisis-of-solidarity
6https://wherepeteris.com/harmony-of-amoris-and-veritatis-splendor/
7https://www.catholiceducation.org/en/religion-and-philosophy/catholic-faith/debating-amoris-laetitia-a-look-ahead.html
8https://www.catholicculture.org/commentary/popes-new-encyclical-ignores-previous-social-teaching/
9“Novo” ou “Nova”. Em inglês ambas as palavras são traduzidas como “new”.